ouso nosso pão e posso
ouso nosso pão e posso
ainda molecular a ideia
para dedos de haver esperança
ouso pensar
coragem e amar
e tanta coisa que é pão.
Trás!...
Explodiu a Verdade,
Agora sou capaz
De tudo
Indiferente e quedo e mudo
Deixarei escangalhar o brinquedo
Que temi na Infância,
Rasgou-se o céu em mil fatias lindas,
Ricos
Fanicos
Que recolhi na mão.
Desilusão! Cristal, cristal, cristal!
E eu a namorar o mal...
Pedro Corsino de Azevedo (poeta caboverdiano)
Um dia
a lagartixa
quis ser dinossauro
Convencida
saltou pra rua
montada em blindados
pra disfarçar a sua insignificância
Tentou mobilizar as formigas
que seguiam
atarefadas
pro trabalho
"Ó pobre e reles lagartixa
condenada
à fria solidão
das paredes enormes e nuas
tu não sabes que os dinossauros
são fósseis
pré-históricos
João Melo (poeta angolano)
A porta fechada é uma obsessão.
As vozes caladas em torno de nós,
as pausas alongadas em silêncios de uma angústia
nova,
são a descontinuidade do tempo interrompido
dentro da casa que arrombaram ontem,
no coração da aldeia do Mazozo.
A chuva cai em bátegas doces, a chuva bate o capim
molhado,
e soa...
A humanidade é fria.
As mulheres já choraram tudo
Mãe Gonga comandou o coro.
Esvaem-se agora em surdina muda,
que agudiza o bater da chuva.
Os homens dizem de quando em quando
um nome obstinado.
Chamava-se Infeliz
aquele rapaz
que levaram ontem
do coração da aldeia.
A chuva matraqueia ainda e sempre
na porta fechada como uma obsessão.
Como ela nos lembra o som odiado
que dia após dia
nos sobressalta!
Como ela recorda o som da metralha,
que dia após dia
desce o morro da Calomboloca
e bate naquela porta fechada,
obcecada de protecção!
A gente conhece o som da metralha
quando ela vem no fim do dia.
Quando ela vem, silencia a aldeia,
então, em sobressalto, o povo diz:
- Foram fuzilados...
E ninguém sabe do Infeliz,
aquele rapaz que levaram ontem...
Henrique Abranches (poeta angolano)
Sinto ainda o cheiro do
sândalo e lembro o aroma vértil no reinício da
vida e a expectativa de
colheitas abundantes.
Lembro também coisas belas
no seio das famílias
humildes plantadas no solo
timorense.
Lembro o Natal herdado,
o café sempre presente,
o arroz, o milho, o búfalo...
Tudo numa harmonia que
escapava à percepção
porque a ecologia é útil,
não é poesia. É sobretudo expressão de viver!
Lembro ainda o Natal sem prendas,
sem fartura...
Lembro um Natal herdado,
certo, um Natal só com um presépio,
a partilha de uma noite ou um dia,
um Menino e doces,
canções pedindo a companhia dos anjos ou
que se repetisse a magia
de Belém.
É que encanto pode vir
tão só de uma noite de
pobreza cantada que de um
minuto preso à esperança
de dias belos!
Crisódio Marcos (poeta timorense)
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)
O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.
Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
- espero a minha própria vinda.
(Navego pela memória
sem margens.
Alguém conta a minha história
e alguém mata os personagens.)
Cecília Meireles (poetisa brasileira)
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade
No oceano integra-se (bem pouco)
uma pedra de sal.
Ficou o espírito, mais livre
que o corpo.
A música, muito além
do instrumento.
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso,
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive à estrela
e é sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
Henriqueta Lisboa (poetisa brasileira)
É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .
Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha . . .
No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)
Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.
Ei-lo que saca de um papel . . .
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas . . .
Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.
Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,
Outra a entretém, a conversar:
— "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."
E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...
Manuel Bandeira (poeta brasileiro)
Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!
Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!
Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...
Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Por que nome chamaremos
quando nos sentirmos pálidos
sobre os abismos supremos?
De que rosto, olhar, instante,
veremos brilhar as âncoras
para as mãos agonizantes?
Que salvação vai ser essa,
com tão fortes asas súbitas,
na definitiva pressa?
Ó grande urgência do aflito!
Ecos de misericórdia
procuram lágrima e grito,
– andam nas ruas do mundo,
pondo sedas de silêncio
em lábios de moribundo.
Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Em busca dos irmãos que tinham ido
Eu parti com pouco ouro e muita bênção
Sob o olhar dos pais aflitos.
Eu encontrei os meus irmãos
Que a ira do Senhor transformou em pedra
Mas ainda não encontrei o velho mendigo
Que ficava na encruzilhada do bom e do mau caminho
E que se parecia com Jesus de Nazaré...
Vinícius de Moraes (poeta brasileiro)
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação:
quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispector (poetisa brasileira)
I
E a embarcação aparecia como um barco de recreio.
Do pescador a musculatura dolorosamente suada
merecia uma simples pincelada
de silhueta negra
impressionismo fácil
afirmação exótica que o dongo
não andava sozinho.
II
Mas é novo este azul tela rasgada
é novo o nosso olhar.
É nova esta forma gestual de espuma
feita sabor de amor de guerra e de vitória
em nossas bocas férteis em nossa pálpebras
de antigo medo clandestino
soletrando a lágrima
quando era o nosso mar recordação também
escravizada:
caminho secular de ir e não vir.
III
É nova esta areia
este marulhar de fogo nos ouvidos
quase notícia do rebentamento maior
sobre o inimigo.
É novo este calor como se o sol
fosse um ananás coletivos suculentos
rasgado pelos dados da madrugada mais quente
e mais suave.
IV
E é bom medir a água evaporada
sobre a concha
a alga
a rocha.
Medir também teu corpo natural
onde encontrar a boca
os pés
os olhos
a palavra.
V
E é bom verificar as mãos. Principalmente
as nossas mãos humedecidas pelo mar.
As mãos que tocam as coisas
As mãos que fazem as coisas
As mãos. As mãos terminal de carga
e de descarga do nosso pensamento
As mãos mergulhadas sob a água.
na (re) descoberta tímida das, essências
no pulsar submarino de uma nova esperança.
VI
Tudo é fugaz
entre o desenho do teu pé na areia
e a onda que desfaz
a marca
Entre a guerra e a paz
retorno fisicamente o poema a onda
constante meditação primeira.
Nós e as coisas.
Nada permanece que não seja
para a necessária mudança.
Que o diga o mar.
A tinta e a lápis
Escrevem-se todos
Os versos do mundo.
Que monstros existem
Nadando no poço
Negro e fecundo?
Que outros deslizam
Largando o carvão
De seus ossos?
Como o ser vivo
Que é um verso,
Um organismo
Com sangue e sopro,
Pode brotar
De germes mortos?
*
O papel nem sempre
É branco como
A primeira manhã.
É muitas vezes
O pardo e pobre
Papel de embrulho;
É de outras vezes
De carta aérea,
Leve de nuvem.
Mas é no papel,
No branco asséptico,
Que o verso rebenta.
Como um ser vivo
Pode brotar
De um chão mineral?
João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)
Estás no altar, bem sei,
acima de mim que olho
o teu vestido de gesso
pintado de azul.
E escovo com a mão o fato,
com um gesto inusitado,
na lapela azul do fato.
Rezo um Pai Nosso.
"Pai Nosso. Ave!"
Digo:"Salve!
bendita entre as mulheres,
ó minha Mãe!"
Sou tão pequeno, pequeno,
ao pé de ti, minha Mãe!
"Eu tinha um urso de
pano...
Ave!
a quem arranquei os olhos"
Tenho frio nos joelhos.
Ainda é noite na cidade.
"Tu tiraste-mos da boca
e eu cresci, minha Mãe!"
Maria!
Cresci tanto que não posso
já com o peso dos anos.
"Tinha a boca ensanguentada
dos agudos olhos vidros."
Mas não está aqui ninguém.
Posso chorar à vontade.
"Pintaste as covas de azul,
digo, nas covas, os olhos.
E eu chorei."
Cheia de graça!
Chorei como choro agora
de sentir na minha carne
os raios de arame-cobre
que descem de tuas mãos.
O sol ainda não nasceu.
Também que mania esta
de não mudarem as horas.
Ave!
Aqui a luz é das velas
e de uma lâmpada eléctrica.
Mas que solidão, meu Deus!
"O urso ficou guardado
numa caixa lá no sótão.
Meti-lhe os dedos nos olhos."
O Senhor é convosco!
Senti, como sinto sempre,
a dor fina quando esfrego
os olhos, de ter chorado
depois, nesta vida breve.
Bendita sois vós!
Alguém entrou. Quem será?
Parece haver claridade.
São já oito horas certas.
Saíste de casa às sete.
Terás esquecido a chave?
Bendita sois vós!
Sou tão pequeno, pequeno
Ao pé de ti, minha Mãe!
"O tempo
é muito tempo
para uma vida
pequena"
Bendita sois vós!
A nossa vida é pequena,
como eu sou pequeno, Mãe!
E eu queria bendizer-vos.
Bendita sois vós!
Estás fraco, rapaz, estás fraco.
Levanta-te. Vai-te embora.
Mas antes reza a oração
que nosso Pai ensinou.
Digo: Jesus. Tanto faz.
Vá!
"Pai Nosso que estás no céu.
Santificado..."
É possível que o correio
Venha hoje de Timor.
Salve!
Timor!
Timor! Que paciência eterna!
Vinte anos de paciência.
Ilha de mistérios densa
e gente de tez morena.
Timor, minha ilha querida.
Minha verdade. Falida?...
Ó minha causa perdida!
Senhora, tem piedade.
Tem piedade, Senhora.
Tem piedade.
Olha-me por essa gente
portuguesa,
que te ergueu um trono, uma pedra.
Um sacrário de inocência.
Fatu lulik Maria!
Tata-Mai-Lau, Tutuala,
Mata-Bia, alma dos mortos.
Sagrado monte dos mortos.
Venilale, Ave-Maria!
E abro de pronto os braços.
Sou eu que agora actuo.
Não falo, apenas murmuro
no halo que Timor teve.
"Senhora, tem piedade.
Tem piedade de mim.
Sê tu a minha verdade
na vida."
E senti-me trespassado
nos olhos, no corpo todo,
pelos raios - momento breve,
fulgente de frio e cobre -
que tuas mãos irradiam
em S. Luís dos Franceses.
Salve!
Ó clemente,
ó piedosa,
ó doce...
E saí, doido varrido,
cego de azul, cego, cego,
mas contigo, só contigo
e o meu urso pequenino
cego, cego, cego, cego,
desta igreja escura e fria.
Numa manhã de neblina
doirada pelo céu de inverno
entrei, radiante, pelo Rossio.
Salve!
Não havia táxis.
Mas segui, radiante, o meu destino.
Salve, salve, salve!
Em Timor amanhecia!
Ave Maria!
Entrei na Brasileira do Chiado.
Pedi um chá com torradas
e li o jornal.
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...
Há notícias no jornal.
Caso raro.
Ruy Cinatti (poeta timorense)
Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.
Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.
Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.
Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.
Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça? Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção
Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim
Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.
Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.
Affonso Romano Sant'Anna (poeta brasileiro)